“Há que dizer que, em termos gerais, o documento está muito bem estruturado e apresentado, com temas bem segmentados, de muito fácil leitura e entendimento. Mas eu diria que o que sobra em forma, falta em coerência e ‘assurance’”. Por Nuno Moreira da Cruz - Mar 5, 2021, Artigo no portal VER – Valores, Ética e Responsabilidade.
Começo como pretendo acabar – não entendo como se pode avançar para aquele que será provavelmente o maior desafio de execução que se apresenta na história recente deste país, sem uma reforma fundamental a montante e sem a qual nenhuma das 31 reformas estruturais propostas pode realisticamente acontecer – a reforma da Administração Pública. Sem a execução desta reforma será impensável conseguir a execução deste Programa. Exagero? Talvez, mas não muito.
Para dar algum contexto para a importância de que esta oportunidade histórica não pode ser desperdiçada, aponto para alguns factos (todos dados 2018 e retirados de uma excelente publicação recente de Alexandre Relvas) referentes a indicadores-chave de desenvolvimento:
O PIB/capita situa-se nos cerca de 24k € vs média da EU de 31K €, sendo que apenas seis países estão piores.
Desde 2000 o nosso crescimento médio anual foi de 0.6%. De entre todos os países da OCDE apenas a Itália teve um crescimento pior.
Em termos de produtividade/hora trabalhada, enquanto a média europeia passou de 26€ para 41€, a nossa subiu apenas de 18€ para 26€. Ou seja, atingimos em 2018 a média europeia do ano…2000. Sendo que a % vs a média europeia baixou de 67 para 65.
Em Portugal apenas 50% da população entre os 25 e os 64 anos completou o ensino secundário. Somos o país com nível médio de educação mais baixo entre todos os países da UE28. Só Malta com 53% se aproxima de Portugal
Em termos de inovação como % do PIB temos 0.7% vs 1.4% média europeia
O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) esteve em consulta pública até ao passado dia 1 de março e pretende ser, conforme referido no site oficial do Governo “um amplo documento estratégico, onde estão plasmadas reformas estruturais fundamentais para assegurar a saída da crise pandémica e garantir um futuro resiliente para Portugal”.
A combinação dos fundos europeus do Quadro Financeiro Plurianual e do Next Generation EU permitirá a Portugal aceder, considerando apenas as subvenções, a um volume de cerca de 45 mil milhões de euros no período de 2021 a 2029. Desse valor, o Mecanismo Europeu de Recuperação e Resiliência, que financiará o PRR, atribuirá a Portugal cerca de 14 mil milhões de euros em subvenções nos próximos cinco anos. A estes fundos poderão ainda acrescer cerca de €16 mil milhões na modalidade de empréstimos. O objetivo deste Mecanismo é “apoiar a concretização de investimentos e reformas que capacitem as economias dos Estados-Membros, tornando-as mais resilientes e mais bem preparadas para o futuro”.
O Plano de Recuperação e Resiliência estrutura-se em três dimensões – a resiliência, a transição climática e a transição digital –, sendo que a dimensão Resiliência (em que mais me centro para escrever este contributo) assume uma relevância predominante não só porque a ela estão afetos cerca de €8 mil milhões de investimentos (dos 14 citados anteriormente) mas também porque é nela que “têm de acontecer” mais de metade das reformas estruturais previstas (16 em 31). “Sob o desígnio da resiliência, pretende-se estimular uma retoma consequente, inclusiva e duradoura face a um severo choque exógeno, com bases robustas que preparem o país para choques futuros”, lê-se no documento.
Se tivermos claro que dificilmente haverá sustentabilidade económica sem preocupações sociais e ambientais, o que é também cada vez mais verdade é que sem as preocupações sociais e ambientais dificilmente haverá sustentabilidade económica. Se isto é verdade ao nível das empresas, ainda mais o é ao nível do país. Neste contexto entendo que, do ponto de vista do PRR, a dimensão “Transição Climática” cobre a vertente ambiente e a dimensão “Resiliência” trata essencialmente da vertente social. O que é muito visível nos dois primeiros roteiros propostos: vulnerabilidades sociais e potencial produtivo e emprego. O terceiro roteiro (competitividade e coesão territorial) não tanto.
Há que dizer que, em termos gerais, o documento está muito bem estruturado e apresentado, com temas bem segmentados, de muito fácil leitura e entendimento. Mas eu diria que o que sobra em forma, falta em coerência e “assurance”.
Sem querer nem poder entrar no detalhe de cada reforma ou investimento proposto há três preocupações essenciais que parecem emergir da análise dos mesmos, a saber:
Falta de alinhamento com o que foi proposto no documento “Visão estratégica para o plano de recuperação económica de Portugal 2020-2030” desenvolvido por António Costa Silva. Desafio o leitor a encontrar pontos de convergência entre aquilo a que nesse documento se chamam “Respostas aos Constrangimentos Estruturais” e as ações propostas no PRR e mais especificamente na dimensão Resiliência. Terá dificuldade. Como referia José Sarmento num bom artigo publicado recentemente no Jornal de Negócios, “a lista (de prioridades e investimentos) não tem a ver com a visão estratégica (enunciada por ACS), mas resulta do ajuntamento de diversos pedidos acumulados, e não satisfeitos, pela administração pública ao longo dos anos”
Medição de impacto (analise custo/benefício) não parece estar ainda feita (admito que tenha de aparecer em fase posterior do processo) e é fundamental para se poder entender quais as reformas e investimentos em que genuinamente nos devemos concentrar. E mais importante ainda: para poder entender como é que com estas medidas vamos ser capazes de recuperar o tempo perdido e definitivamente alcançar a média europeia nos indicadores chave de progresso. Pessoalmente, nunca consigo entender o argumento tantas vezes esgrimido de que “estamos melhores que em anos anteriores” sem ser acompanhado de uma análise comparativa “e os outros melhoraram ainda mais?” Esta é uma análise em que infelizmente nos últimos anos e em vários indicadores cruciais temos vindo a degradar a nossa posição relativa na escala europeia.
A articulação entre reformas e o grau de dependência entre elas na implementação não parece evidente. Algumas questões que decorrem disto: em que ordem devem acontecer? Como é que uma afeta a outra? Grau de dependência entre reformas? Quais não podem acontecer sem que outras aconteçam primeiro?
E por ser a minha maior preocupação, quero terminar como comecei. Mesmo com a estratégia correta, o grande problema (na vida de todas as organizações, sejam elas empresas ou Estado enquanto tal) é sempre a execução dessa estratégia. Tenho muita dificuldade em entender que não haja uma verdadeira aposta na Reforma da Administração Publica, sem a qual dificilmente esta execução terá êxito – esta é a reforma das reformas. É certo que na dimensão “Transição Digital” parece haver uma aposta grande na “digitalização do Estado” e que se isso for conseguido é uma importante “mudança cultural” que se consegue. Mas a Reforma da Administração Publica vai muito para além da Transição Digital. Há agora dinheiro para a fazer, falta apenas a coragem política – necessitamos de “menos e melhor Estado”.
Nuno Moreira da Cruz
Executive Director
Center for Responsible Business & Leadership
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